segunda-feira, 18 de maio de 2020

Musica.

APÓS ENTRAR NO RADAR DE DJS DO CIRCUITO INTERNACIONAL,
MARIA RITA STUMPF VOLTA AOS ESTÚDIOS DEPOIS DE 27 ANOS

Com lançamento em 29 de maio, terceiro disco da cantora e compositora
gaúcha reúne dream team de instrumentistas da música brasileira.



Texto: Leonardo Lichote




(crédito Demian Golovaty)


“SOMOS TODOS ÍNDIOS”
https://bit.ly/2WuHrr5 (SoundCloud)






As duas palavras - que soam como sementes do sentido da existência humana - são cantadas repetidas vezes, ecoadas, espelhadas nos últimos segundos de “Inkiri Om”, canção que abre e dá título ao terceiro disco de Maria Rita Stumpf.

Não é um acaso. “Todos” e “origem” guardam em grande medida o que se ouve nos poucos mais de 40 minutos do álbum - nos quais Maria Rita interpreta composições próprias (inclusive uma parceria com o poeta Gregório de Matos, que soa atualíssimo em seu olhar ácido sobre o Brasil, a despeito de tê-los escrito no século XVII) e de artistas como TaiguaraMilton NascimentoNelson AngeloVinicius CantuáriaEvandro Mesquita e Violeta Parra. Em versos, arranjos e melodias, a cantora aponta na direção de uma consciência da comunhão e das raízes humanas, da forma como os destinos de todos (homens, mulheres, animais, plantas, Terra, cosmos) se encontram inevitavelmente entrelaçados desde o início - uma obviedade que nos é lembrada de maneira inconteste em traumas como a pandemia que assola o mundo neste início de 2020.



Mais do que isso, no disco Maria Rita concretiza em música um universo no qual a comunhão e a ligação com a origem são a base. E faz isso com uma convicção que desafia as armadilhas teóricas de conceitos como “lugar de fala” e “apropriação cultural”. Mulher gaúcha, branca, ela não se furta a mergulhar em tradições indígenas, africanas, latinas, indianas, árabes, asiáticas, europeias para construir “Inkiri Om”.

“A essência humana é uma só, seja no Xingu ou em Manhattan”, defende a cantora. “E a essência está na origem. Por não respeitarmos a origem estamos caminhando para nosso fim. Não à toa a capa do disco (desenvolvida pelo designer Juliano de Oliveira Moraes, a partir de pintura de Julio Saraiva e obra de Miguel Gontijo, criada especialmente para o álbum) traz o oroboro, figura mitológica que está em várias culturas e na minha vida”.

O oroboro, serpente que come o próprio rabo, volta eterna e transformada ao início, remete, como Maria Ritachama a atenção, a seu próprio caminho artístico. Em 1988, a cantora lançou seu disco de estreia, “Brasileira” - no qual assinava apenas como Maria Rita. Ao lado de músicos como Luiz Eça, Ricardo Bordini e o grupo Uakti, o disco já propunha o diálogo entre tradições de ancestralidades diversas - de cantos indígenas à música clássica. Celebrado pela crítica, o álbum concorreu em 1989 ao Prêmio Sharp, na categoria Cantora Revelação da MPB - que Marisa Monte acabou levando, por seu disco de estreia.

Maria Rita lançaria ainda, em 1993, “Mapa das nuvens” - aprofundando-se na mesma vocação de cruzar linguagens e sabedorias. “Inkiri Om” marca, portanto, a volta da cantora aos estúdios depois de 27 anos - período no qual ela continuou próxima da arte, mas nos bastidores, no comando da produtora Antares, que trouxe ao Brasil os maiores nomes da música clássica e da dança. O sucesso da Antares e o tempo que a empresa demandava, somado à dificuldade de se produzir música como a sua, de fronteiras, afastou a artista de sua carreira.

O retorno de Maria Rita começou a se desenhar à sua revelia. A partir de 2015, “Brasileira” entrou no radar de DJs do circuito internacional e passou a ser disputado por colecionadores de vinil, puxado pela faixa “Cântico brasileiro nº 3 (Kamauará)”. Em 2017, o álbum foi relançado em vinil e digital pelo selo Selva - criado pelos DJs Millos Kaiser e Augusto Trepanado, da festa Selvagem, especialmente para a reedição (esgotada). No mesmo ano, lançou o EP “Brasileira remixes” e foi incluída na coletânea Outro tempo: electronic and contemporary music from Brazil, 1978-1992”, do pesquisador anglo-espanhol radicado em Londres John Gómez. A volta aos shows foi consequência: desde então, ela passou por palcos como Red Bull Music Academy Festival (em São Paulo - no tradicional e vanguardista Teatro Oficina - e na Casa de Francisca), Kino Beat Festival (Porto Alegre) e a edição brasileira do festival holandês Dekmantel (também em São Paulo).

O desejo de gravar, que nunca havia sido abandonado, foi reaquecido. Em 2018, numa conversa com o produtor Kassin KamalMaria Rita foi incentivada por ele a lançar um novo álbum. Pouco tempo depois, ela sofreu uma queda na Avenida Paulista, numa tentativa de assalto, que provocou o rompimento de dois ligamentos no tornozelo. Resultado: 60 dias sem poder pôr o pé no chão. “Inkiri Om” fermentou nesse período.

Recuperada, Maria Rita reuniu amigos dos tempos de “Brasileira” e “Mapa das nuvens” a outros mais recentes no estúdio Aprazível, de Philippe Ingrand (Doudou, “o francês mais brasileiro que conheço”, na definição da cantora). No primeiro grupo estavam, além de Doudou, o multi-instrumentista Ricardo Bordini (que assina com ela a direção artística do disco), o violoncelista Lui Coimbra (responsável pela direção musical), o violonista Maurício Carrilho, o guitarrista Paulo Rafael, os percussionistas Marcos SuzanoPaulo Santos (do Uakti) e Jovi Joviniano. Engrossaram o time Matheus Câmara (aka Entropia-Entalpia, nas guitarras e programações, músico em grande medida responsável pela porção eletrônica do disco), Danilo Andrade (pianos, teclados, programações) Kassin Kamal (baixo), João Lyra (viola caipira), Ayran Nicodemo (violino), João Senna (viola) e Eduardo Neves (flautas). Um dream team que reflete a amplitude da música da artista, com nomes de diferentes segmentos da música popular, instrumentistas ligados a vanguardas de muitas naturezas, gente da música clássica.

Juntos, eles construíram a sonoridade de “Inkiri Om” - fosse pelos arranjos coletivos ou pela colaboração ampla quando os arranjos eram assinados, ou seja, partiam de concepções mais definidas. “Um disco de tribo”, define Maria Rita.

Inkiri Om (Cântico brasileiro nº 7)”, faixa composta por ela e que abre o disco, lista etnias sobre o chão de xequerês e tablas e violoncelos e graves eletrônicos e flautas. Traduz em música o encontro da expressão-chave do disco. Inkiri” (“o amor em mim saúda o amor em ti”) é um cumprimento que há séculos era usado por uma tribo que viveu na região de Piracanga, na Península de Maraú, na Bahia. “Om” é o mantra mais importante do hinduísmo, o “som do universo” - Maria Rita estudou budismo na Índia, onde esteve nove vezes (sua vivência inclui ainda lugares como Nepal e Peru, onde morou por três anos).

No momento em que a cantora, na letra, cita os Avás-Canoeiros, a flauta faz referência à melodia de “Canoa canoa” (Nelson Angelo e Fernando Brant) - canção que encerra o disco. Amarras como essa costuram todo o álbum - um arranjo usa fragmentos instrumentais de outros, num diálogo que desfolha o disco em muitas camadas.

A listagem de etnias desemboca naturalmente na afirmação “Somos todos índios” (Vinícius Cantuária e Evandro Mesquita), que dá título à segunda faixa. Primeiro single de “Inkiri Om”, ela tem a força direta das canções feitas para se cantar a muitas vozes, como faz o coro infantil da UFRJ na gravação. “Somos todos índios” carrega portanto essa energia de música de aldeia, de hino folk. Faz pensar em canções como “Heal the world”, de Michael Jackson, que operava nas mesmas frequências declaradamente positivas. Melodia e letra afinadas para alcançar um sentimento de comunhão ancestral e contemporâneo - necessário como nunca neste 2020. O arranjo - apesar de ser o mais pop de um disco repleto de ousadias formais - foge do convencionalismo ao abraçar percussões tradicionais da Ásia e da África, em meio a instrumentos de orquestra como piano e clarineta. Sons que servem de base para um canto “de luta por um mundo de paz”, como diz a letra.

Canção das horas”, de Maria Rita, cruza mitologias da Grécia, da Ásia e da Amazônia numa melodia que flutua sobre a delicadeza de pianos e tablas - apesar do cenário de destruição produzido por “homens sem luz” e testemunhado por deuses. É a preparação para a releitura épica de “Sete Cenas de Imyra” (Taiguara). Ao longo de seis minutos, há uma ambientação sonora para cada uma das cenas do mito de nascimento, destruição e renascimento descrito na letra. Oroboro sonoro - timbres eletrônicos e ritmos indígenas aparecem organicamente ligados sem limites entre eles.

Indígena nos versos em primeira pessoa, “Promessas do sol” (Milton Nascimento e Fernando Brant) se baseia no acordeão surpreendente de Bordini, sobre percussões de muitas geografias. O músico mantém o tom de surpresa no arranjo essencialmente eletrônico e climático de “Hai kai das borboletas” (parceria de Maria Rita e Zé Caradípia) - no qual executa sozinho as programações.

Num terreno tão livre, a toada “Água benta” (Nando D’Ávila) chega sem choque. No arranjo de Sergio Assad, o violão de Mauricio Carrilho e a viola caipira de João Lyra conversam com a guitarra de Paulo Rafael (Ave SangriaAlceu Valença) e o baixo de Kassin Kamal como se tivessem crescido juntos num mesmo quintal. Outros interiores são visitados em “Aavoth”, no qual cítaras, tablas e derbaks instauram um território de mística árabe e indiana.

A viagem em torno da grande aldeia chega a “Run Run se fue pal norte” (Violeta Parra). O quarteto de cordas instaura a sala de concerto sob a sombra dos Andes, na qual Marcos Suzano adentra com seu reisado, seu “canto do Jequitinhonha”, como descreve Maria Rita.

Dona Bahia” (com música de Maria Rita sobre versos de Gregório de Matos) cria uma atmosfera atemporal e desterritorializada - o burburinho gravado na feira da Glória, a água da torneira, a escova lavando roupas no tanque, a imprecisão orgânica da marimba de vidro tocada com arco - para sustentar um discurso profundamente realista e contemporâneo. Uma crítica à sordidez dos governantes numa Salvador do século XVII que serve como metáfora do Brasil do século XXI ou mesmo do que se convencionou chamar de civilização ocidental.

O disco se encerra com “Canoa canoa” - outra civilização possível defendida sob flautas, pianos, tambores orgânicos e eletrônicos, violinos e violoncelos. Uma civilização que, como dizem os versos de Fernando Brant, prefere as águas, o rio, os peixes. Prefere pescar. A civilização da qual “Inkiri Om” desenha o mapa, ecoando a citação de Manoel de Barros presente no encarte:

“...se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite”.

Todos. Origem.


Inkiri OM

Gravado no Estúdio Aprazível, Rio de Janeiro, entre fevereiro e agosto de 2019, por Philippe Ingrand (Doudou) e Bruno Tavares

Concepção e Direção de Produção: Maria Rita Stumpf
Direção Musical: Lui Coimbra e Ricardo Bordini
Mixagem: Philippe Ingrand (Doudou) e Lui Coimbra
Masterizado por Ken Lee Mastering (Los Angeles)
Distribuído por TRATORE para o selo Antares SP

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